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O lado sério da hipnose

  • Posted on:  Tuesday, 25 June 2013 12:39
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A psicóloga Lina Schlachter ouve gritos vindos da emergência do centro médico da Universidade de Tennessee, nos Estados Unidos, e se apressa. No corredor do setor de traumas, depara-se com um mecânico de 42 anos urrando de dor. Ele teve a perna direita destroçada após um acidente em uma das fábricas da região e está imobilizado, suando muito. Após encontrar com Lina, pouco a pouco, os gritos do paciente se transformam em gemidos, cada vez mais baixos. Dez minutos depois, ele relata que a dor, antes insuportável, não o incomoda mais. No lugar, diz haver apenas um formigamento. Tudo isso, sem nenhum sedativo.

 

A cearense Lina, doutora em psicologia clínica pela Universidade do Tennessee, não faz mágica. “Foram exercícios de respiração e uma série de sugestões para que ele se concentrasse, pensasse no lugar de que mais gosta de passear e começasse a relaxar”, diz. O caso do acidente, apresentado em uma conferência médica nos Estados Unidos em 2008, é um exemplo de como a medicina tradicional tem se aliado a certas técnicas de hipnose para combater diversos problemas de saúde. Ele se soma a uma série de pesquisas publicadas em alguns dos periódicos científicos mais rigorosos do mundo, como Science, The Lancet e Proceedings of the National Academy. E o que esses estudos afirmam? Que dá, sim, para tratar dores crônicas, insônia, enxaqueca, obesidade, vícios, fobias, doenças de pele, entre outros males, com hipnose. Mas não é aquela hipnose de estalar dedos e fazer com que o problema desapareça. São sessões com método definido, em tratamentos que podem levar meses.

Não à toa, há cada vez mais cientistas e pesquisadores “hipnotizados” pelo tema. O número de estudos publicados por ano sobre o assunto cresceu 50% na última década, chegando a 280 só em 2009 (último ano com números fechados), segundo o banco de dados científico Pubmed. Entre as pesquisas recentes, destaca-se levantamento com 124 mulheres realizado em 2010 na Universidade de Stanford que constatou que a prática da hipnose pode atenuar o sofrimento de pacientes com câncer de mama. Outro trabalho, feito em 2008 na Universidade da Califórnia, avaliou fumantes que usaram a técnica para largar o cigarro — o grupo de hipnotizados teve 50% mais sucesso no tratamento em relação ao outro time.

Quem hipnotiza hoje não são showmen com ar sombrio, jeito de ilusionista e papo de charlatão. Os novos hipnotizadores têm diploma de médico, psicólogo ou dentista, e preferem ser chamados de hipnólogos. Não se encontram em programas de variedades, mas em locais como o Hospital das Clínicas, o A.C. Camargo e o São Camilo, todos em São Paulo, além de clínicas médicas renomadas. “A prática vem crescendo bastante no Brasil, principalmente contra problemas de somatização, quando uma doença se manifesta ou se agrava por causa de algum distúrbio emocional. Os conselhos federais de medicina, psicologia, odontologia e fisioterapia já a aprovam”, diz a psicóloga Miriam Pontes, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Hipnose, que conta com 2 mil profissionais associados em todo o Brasil.


COMO FUNCIONA
Olhe fixamente nos meus olhos e esqueça toda aquela ideia de pêndulo, comer cebola achando que é maçã, cocoricar feito um galo e outras pirotecnias. Cientificamente falando, a hipnose é um estado em que a percepção, a memória e as ações de alguém podem ser alteradas por sugestão de outra pessoa. Alguns têm facilidade imensa em serem hipnotizados; outros, raramente conseguem. “O indivíduo fica consciente, mas o cérebro temporariamente suprime as tentativas de confirmar as informações vindas dos sentidos. O senso crítico baixa e há uma atenção maior no que o hipnotizador sugere”, diz Osmar Colás, coordenador do Grupo de Estudos da Hipnose da Escola Paulista de Medicina. Trabalhada adequadamente, essa hiperatenção pode, por exemplo, fazer com que a gente ignore sensações enviadas pelo corpo. É como um jogador de futebol quando sofre uma pancada forte na perna durante a final do campeonato, mas continua jogando, só sentindo a dor depois do término da partida.

No cérebro, já descobrimos algumas das regiões onde esse fenômeno ocorre. Estudos com neuroimagens mostram que o giro do cíngulo anterior direito, uma área responsável por levar informações dos sentidos até a nossa parte racional, é atingido pela hipnose. “A sugestão chega a essa região intermediária, que é quem vai decidir para onde vai a atenção, como se inoculasse um pensamento na cabeça da pessoa”, diz Mohamad Bazzi, médico brasileiro que estuda hipnose há duas décadas. É ali que pesquisadores acreditam que a “autentificação” falha.

Foi provavelmente o que aconteceu com o mecânico citado no começo desta reportagem quando, após as repetidas sugestões, deixou de se focar na informação de dor da perna destroçada. O caso dele, no entanto, não é regra: apenas 10% da população mundial é altamente suscetível à hipnose (veja como isso é medido no quadro abaixo). Para pessoas menos passíveis, leva-se tempo até chegar a um transe profundo — e, ainda assim, não há garantia de que ela consiga atingir esse estado. A diarista Andreia Peres Maranhão, 34 anos, por exemplo, precisou passar por 12 sessões durante um mês até estar pronta para uma cirurgia de retirada de um nódulo mamário, feita em transe hipnótico. “Já tinha tido uma experiência ruim com anestesia antes e estava amamentando [a amamentação teria de ser interrompida por conta do uso do sedativo]”, diz.

Durante as sessões, a anestesista Cristiane Hikiji Nogueira fazia com que Andreia treinasse seu cérebro a desviar a dor. No começo, girava uma caneta em frente aos olhos da paciente, que começava a relaxar. Então, passava a espetar Andreia com agulhas finas e dizia que aquela região não seria mais sentida. Nas sessões seguintes, conforme ela ia conseguindo ignorar a dor, o diâmetro das agulhas aumentava até se aproximar do tamanho que seria equivalente ao bisturi. Os anestésicos tradicionais também foram preparados na operação, para o caso de emergências, mas se mostraram desnecessários. “Já fiz mais de 30 cirurgias só com hipnose e nunca tive problemas”, afirma Cristiane, que hipnotizou Andreia no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. Como toda essa preparação é demorada, a hipnose na maioria das vezes acaba sendo a segunda opção, usada principalmente quando o paciente tem pavor ou alergia à anestesia.

Também é possível juntar as duas coisas: hipnose e anestésicos. Foi o que fez a professora paulistana Gabriela Talarico, 32 anos, ao retirar dois dentes do siso. Gabriela, que tinha medo demais de anestesia, estava em pânico quando chegou ao consultório do dentista Marcelo Martins. Com repetidas sugestões de relaxamento, Martins fez Gabriela entrar em transe, ficando menos suscetível às reações de dor, e administrou apenas um terço da quantidade normal de anestésico. “Como não houve preparação, a hipnose não foi tão profunda, mas foi o suficiente para acalmá-la e obter melhorias de cicatrização e de controle de sangramento”, afirma.

No Centro de Dor do Hospital das Clínicas de São Paulo, técnicas mais longas são ensinadas para lidar com dores crônicas como enxaqueca e fibromialgia. “Ensinamos exercícios de auto-hipnose para que os pacientes repitam em suas casas”, diz Adriana Loduca, psicóloga do hospital. Uma das técnicas começa com exercícios de respiração em seis etapas e depois evolui para concentração em algum tipo de imagem, para que o cérebro se desvie da dor.


A CIÊNCIA DA HIPNOSE
Apesar de impressionantes, exemplos desse tipo eram antes encarados com ceticismo por acadêmicos. Como provar que não se tratava de efeito placebo, ou que alguns desses casos não eram forjados? A maior parte dessas dúvidas caiu em 1998, quando os cientistas com Ph.D. Stephen Kosslyn, da Universidade de Harvard, e David Spiegel, de Stanford, usaram o PET (tomografia por emissão de pósitrons, um exame de imagem sofisticado) para “fotografar” a hipnose. Eles sugestionaram indivíduos a enxergarem cores em um painel preto e branco e constataram que os cérebros agiam como se realmente existissem cartazes coloridos na frente. “O fluxo sanguíneo no cérebro repetiu o padrão de quando a pessoa enxerga colorido. Ou seja, o cérebro estava realmente ‘vendo’ aquilo”, diz Spiegel, que estuda hipnose desde os anos 1970.

Considerado um divisor de águas, o estudo gera frutos até hoje. Tanto que, em 2010, o pesquisador Devin Terhune, de Oxford, usou um princípio parecido para mostrar como a hipnose poderia ser usada para um feito antes tido como impossível: reverter a sinestesia. A doença rara leva a uma confusão de sentidos no cérebro, como, por exemplo, enxergar imagens inexistentes ao ouvir determinados sons. No caso da voluntária tratada pelo experimento, cores fortes surgiam no seu cérebro todas as vezes em que ela via um rosto. Induzindo o transe, Terhune desviou o “caminho cerebral” durante o fenômeno fazendo com que ela ignorasse as cores que apareceriam em sua mente. Um eletroencefalograma confirmou o efeito. “Ela relatou que não tinha mais espasmos de cor ao ver faces e, ao mesmo tempo, a área ligada à confusão mental no cérebro reduziu sua atividade elétrica”, afirma Terhune. O pesquisador ressalva que tudo isso só funcionou porque a voluntária era altamente hipnotizável.


PSICOLOGIA A MAIS
Atacar a dor é o efeito mais conhecido dessa reorganização mental, mas está longe de ser o único. A maior parte das possibilidades está na área de distúrbios psicossomáticos e comportamentais. Males como insônia, fobias, hipertensão e obesidade muitas vezes estão bastante relacionados a fatores psicológicos. É nesses casos — e não em todos — que a hipnose pode dar uma boa ajuda. Foi o que mostrou em 1995 Irving Kirsch, um dos maiores especialistas em hipnose clínica do mundo e Ph.D. em psicologia pela University of Southern California. Em uma grande revisão de estudos, Kirsch constatou que a prática melhorava, em 70% dos casos, os efeitos positivos das terapias baseadas em psicologia cognitivo-comportamental, que é a forma mais popular e difundida de tratamento para esses problemas.

A relações-públicas Simone Araújo, 35 anos, comprovou esse benefício. Ela sofre de dermatite atópica, uma doença incurável que provoca descamação, coceira e manchas avermelhadas pelo corpo, e que piora em momentos de estresse. Após tentar uma série de tratamentos e tomar dezenas de remédios, ela conseguiu uma grande melhoria do problema usando hipnose aliada à psicoterapia. “Era minha última esperança. Antes, estava difícil até mesmo abraçar meus filhos porque eu sentia muita dor com a pele machucada. Hoje abraço, beijo e levo até beliscão”, diz Simone.

Ela trabalhou sua ansiedade nas sessões de hipnose. Fazia uma série de exercícios de respiração que estimulavam o seu relaxamento até entrar em transe. Esse estado era realçado por instruções para imaginar situações de tranquilidade. “Amenizava a ansiedade, era como uma boa noite de sono. Sentia uma melhora grande até a próxima sessão.” O humor de Simone melhorava e, depois do segundo mês, as manchas também.

Se ajuda na parte psicológica, a hipnose também tem efeito contra vícios como o tabaco e pode ser usada contra transtornos obsessivos compulsivos. Para o auxiliar de enfermagem Anderson Soares da Silva, 34 anos, a hipnose foi o componente que faltava em seus tratamentos. Antes, ele havia tentado largar o cigarro com adesivos e até antidepressivos, mas ficava no máximo dois dias sem fumar. “Só deu certo quando juntei hipnose a outros remédios. Foi um processo de dois a três meses até conseguir parar definitivamente”, diz Anderson Soares, que conta um ano sem cigarros.

PERDER PESO
Imagine se alguém lhe dissesse que, para emagrecer, não seria necessário fazer cirurgia de estômago, mas apenas fingir ter feito uma? Pois é mais ou menos esse o tratamento já vendido a 500 pacientes por cerca de R$ 3.400 na clínica de hipnose Elite, em Málaga, Espanha. A terapia também diz usar esse efeito psicológico da hipnose. “O paciente é sugestionado a pensar que passou por uma cirurgia de redução de estômago”, diz o hipnólogo espanhol Martin Shirran, sócio da empresa. Para aumentar o poder de persuasão, é armada uma espécie de teatrinho, simulando no ambiente cheiro, tato e sons típicos de um procedimento em uma sala de cirurgia. No final, diz Shirran, o paciente fica com uma imagem no inconsciente de que o estômago está menor, uma espécie de alucinação, e sente que não suporta muita comida. O tratamento virou febre no Reino Unido depois de ter sido usado pela cantora Lily Allen e pela ex-Spice Girl Geri Halliwell.

O arquiteto Felipe Caribe diz ter obtido sucesso com uma experiência parecida em Curitiba. Após várias outras tentativas, ele diz ter emagrecido 14 quilos em três meses de sessões de psicoterapia somadas à hipnose. “Fui sugestionado a sentir que existe um balão inflado dentro do meu estômago que me impede de comer muito”, diz Caribe, que ainda tem 103 quilos e 1,80 m. Apesar da ideia extravagante, há estudos sérios mostrando que a hipnose pode, sim, em casos relacionados à ansiedade, ajudar na redução de peso — embora nenhum cite esse tipo de “cirurgia hipnótica”.

FUTURO DAS PESQUISAS
Um dos próximos passos da ciência da hipnose se aproxima um pouco do teatrinho da clínica espanhola. Há um grupo de cientistas ingleses da Universidade de Greenwich estudando como um ambiente de realidade virtual pode potencializar os efeitos da prática. Outra frente de pesquisadores tenta entender as características genéticas que levam algumas pessoas a serem mais hipnotizáveis que outras. Pelo menos quatro estudos já mostraram que um gene chamado COMT está relacionado à suscetibilidade, mas sua ação exata ainda não é totalmente compreendida.

Há também vários grupos de estudo que desejam simular doenças por meio de hipnose para entendê-las melhor. Um dos líderes dessa corrente é o britânico David Oakley, Ph.D. em psicologia clínica e professor da University College London. Ele publicou uma revisão de iniciativas na área em 2009, em que reúne experimentos nos quais pessoas são hipnotizadas para sentir alucinações auditivas, calor e tipos diferentes de dor, fazendo com que o cérebro simule algo imaginário. Esses estados cerebrais induzidos poderiam ser usados em um ambiente controlado para entender melhor como algumas doenças afetam as pessoas. Uma que já está sendo pesquisada é o transtorno de conversão, que pode gerar paralisia, cegueira e dificuldades motoras.

Outros estudos interessantes são desenvolvidos pelo neurocientista israelense Avi Mendelsohn, que mostrou como o cérebro de pessoas suscetíveis ao esquecimento após a hipnose (10% da população) pode bloquear a ativação da memória. Seus estudos também apontam a possibilidade de criar lembranças falsas. “No futuro acredito que muitos poderão usar a hipnose para bloquear as memórias que estão perturbando suas vidas, ou ao menos suprimir emoções ruins ligadas a essas recordações”, afirma.

CUIDADOS
Há muito de hi-tech nas novas pesquisas, mas o que a maioria dos cientistas da área ainda quer é confirmar a eficácia do tratamento para outros tipos de doenças. “Há um esforço em melhorar a qualidade dos estudos. Alguns são bons, mas boa parte ainda precisa se adequar a padrões de qualidade mais altos para não serem contestados”, afirma Donald Robertson, diretor do UK College of Hypnosis & Hypnoterapy, que revisou dezenas de estudos sobre o tema.

Com mais e mais livros a respeito (só na Amazon, foram registradas 660 novas publicações em 2010), há a tentação de se “provar” rapidamente a eficácia contra vários males. “Temos que entender que a hipnose não é uma panaceia, não tem nada de milagroso. Para a maioria das pessoas, só funciona junto com outras técnicas e em um tratamento prolongado. Ninguém vai dizer ‘pronto, a partir de agora você não fuma mais’. Isso não existe”, diz Mohamad Bazzi.g

Fonte: Revista Galileu
http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI198264-17773,00-O+LADO+SERIO+DA+HIPNOSE.html

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